4

É engraçado comemorar algo quando não se acredita em algo. Hoje me uni aos meus familiares (?) para celebrar o nascimento de Jesus Cristo. E pra mim foi ridículo, pois este ser, seja ele quem for, não representa nada para mim, absolutamente nada. Senti-me estranho, pois é o primeiro ano em que me dei conta disso. Até a véspera de hoje eu nunca cheguei a me questionar sobre isso, todos os anos eu apenas colocava uma roupa que meus parentes não julgariam e ia para a sala de estar, cumprimentá-los. Foi tudo tão igual, tão metodicamente repetido, que parece que o tempo não passou. Este poderia ser o meu segundo natal, acho que não faria diferença alguma.
Muito bem, parabéns pra mim. O que me faz querer arranhar a parede com tesouras não é o fato de eu ter descoberto que não acredito mais em deus. É bem mais simples que isso. Mais uma vez, descubro algo em mim que não combina com o que está fora de mim. De novo a frustração de saber que simplesmente não sirvo, não encaixo. Sou uma peça perdida, aleatória, estou no quebra-cabeça errado. E estou começando a me desesperar, já faz tempo que vi que isso não é apenas uma brincadeira. Sou a peça que não serve e, mesmo assim, estou fadado a conviver com as outras peças em ordem, eternamente. Só de cogitar essa possibilidade sinto ânsia de vômito.

3

  Minha vida sempre foi uma sucessão de dias estranhos, mas os últimos que se passaram foram especialmente mais esquisitos que os demais. Será só uma fase da minha monótona vida ou apenas o começo de uma real existência? Porque se for o começo, preciso me iniciar no processo de adaptação. Mal consegui aguentar estes dias, quem diria uma vida inteira com momentos assim. São bons, mas me fazem sentir de um modo que nunca senti antes, e isso me assusta e me deixa com vontade de obter mais, ao mesmo tempo. Ontem tive mais um exemplo desta contradição.
  Encontrei-me com um grupo de amigos e amigas. Não posso dizer que eram amigos normais, do tipo dos que conhecemos há anos e com quem temos grande intimidade. Aliás, não sei nem se tenho a liberdade de nomear estes indivíduos como amigos; de qualquer modo assim o faço. Essa foi a questão que mais me instigou ao decorrer daquela madrugada, em que ficamos horas conversando. Como posso sentir uma atração tão intensa por pessoas que conheço tão pouco? Não sei de onde veio aquele bem-estar só ao saber que me reuniria com eles mais tarde, naquele dia. A fraternalidade, o gosto quase sexual, a sensação confortável, de onde vem tudo isso? Não preciso nem de explicação, só quero continuar mantendo este contato, e este é o principal problema. Pois a maravilhosa sensação de estar entre amigos foi tão efêmera quanto o processo de conhecê-los. Foi apenas um ponto final na frase que mal havia começado. Nem tive tempo de respirar, de me espreguiçar após o gozo... Aqueles que reconheci como amigos seguirão seu caminho, e eu seguirei o meu, apesar de ainda não saber qual é. E continuarei os vendo, cada vez menos, e aquela intensidade será apenas mais um registro em minha memória.
  Fatos como esse me deixam no chão. A melancolia é tão profunda que mal consigo andar; fico rastejando por aí, enganando a dor. Até conseguir me apoiar em algo fixo de novo, para depois me atirar de volta à incerteza. E conjugar o verbo "sentir" até não poder mais, até perder completamente o seu sentido. Estou sozinho no mundo, eu sei disso, mais do que nunca agora.

2

    Sinto-me estranho ao voltar para casa. Hoje não foi um dia muito normal.

    Um peso incômodo na minha barriga é o que sobrou da experiência que acabei de ter. Não prestei muita atenção aos detalhes, pois estava tão nervoso - não esperava por aquilo - que mal pude fingir tranqüilidade. Eu sabia que não devia ter saído... As coisas não se sairiam muito bem pra mim, é sempre o que eu espero ao acordar, e hoje não foi diferente. E eu estava certo. Ao entrar na livraria, nem lembrei que ele trabalhava lá. Fiquei olhando os livros como de costume, folheando algumas novas edições e analizando outras, e me desanimando ao lembrar que não tenho dinheiro para quase nenhum deles. Quando uma atendente me chamou para fazer um cartão da loja, achei boa a idéia e mal tive tempo para dizer um "sim", ou para cogitar um "não" como resposta. E quem ela chamou para fazer o cartão era ele.
     Não sei como transmitir o que me ocorreu no momento. Nunca imaginei como seria, porque na verdade nunca esperei que fosse acontecer. Fiquei cara a cara e conversei com um homem que sempre admirei, o qual sempre me trouxe muita inspiração. As suas fotos, seus textos, as músicas que ele escuta. Ele sempre foi, para mim, uma fonte inesgotável. Mas infelizmente - ou quem sabe, felizmente - nunca saberá o meu nome. Nunca o perderei, pois nunca o tive. Os segundos de palavras mal-ditas, vazias de valor para ele e para mim, estranhas - pois na verdade eu prestava atenção à sua voz, e não ao que ele dizia - talvez nunca se repitam. E nesta beleza fria, triste e sem gosto de nada, vou observando o mundo e alimentando uma esperança falsa, uma esperança chata, de ser observado também.
      Ao voltar para casa, já me sentindo um inseto, ainda tive a "sorte" de encontrar o professor que me ensinou literatura no ensino médio. Ele é mais um dos indivíduos aos quais admiro incondicionalmente, numa via que só segue uma direção - a de olhar, e nunca ser olhado de volta-. Incontáveis seres são observados por mim, diariamente, e nem se dão conta disso. O resultado de meu encontro com meu professor não poderia ter sido outro: ele passou por mim, me olhou, não me reconheceu - ou pelo menos assim o fingiu - e foi embora. E assim será até eu descobrir a existência de um espelho, ou algo parecido, que complete