7

Não teria sido normal se o dia não acabasse estranho. Não teria sido eu, vivendo.
Meio da tarde, tudo nublado, uma inquietação me invadindo. Eu estava aflito, arrumando minhas coisas de novo, pois em quinze minutos estaria entrando no carro dos meus tios para ir à casa da minha avó materna. Digamos que lá não é um lugar em que eu passe dias alegres e confortáveis, em sua maioria. O lugar, na verdade, não é a raiz do problema. As pessoas que nele habitam, estas sim, são um tanto - leia-se "completamente" - incompatíveis comigo. Mal cheguei aqui e já tive uma amostra, antes mesmo de entrar pela porta, de como é ruim estar com um grupo de pessoas por "obrigação". É, obrigação, pois não consigo pensar em outro termo semelhante no momento. Não me lembro de nenhuma outra razão para estar aqui, agora.
Antes de sair e começar o trajeto de carro até a casa de minha avó, meu tio resolveu parar na casa da mãe dele. Já vi que seria mais uma oportunidade para eu me sentir completamente sem graça.
"Quer gelatina?", a mãe do meu tio me pergunta. Em uma fração de segundo tive que montar uma frase negativa, porém educada.
"Não, obrigado. Acabei de almoçar", murmurei tentando parecer menos tímido. Tenho certeza que ela não havia me ouvido ou fingiu ser momentaneamente surda.
Cinco minutos depois, a mulher volta com dois potes de gelatina: um para mim e outro para a minha tia, que também havia recusado a proposta. "Como eu gostaria de simplesmente desaparecer...", pensei. Opção descartada. O que me restava era comer a gelatina.
Li em vários escritos que a gelatina é feita à base de colágeno, o qual é aproveitado dos ossos triturados do boi. Não tenho como ter certeza, pois nunca vi uma gelatina ser fabricada, então preciso levar em conta de que há uma possibilidade da afirmação estar correta. E como um dedicado vegetariano, traí-me completamente ao me render às regras da boa-educação. Comi a gelatina sem fome, sem gula, nada. Nem aquela maldita compulsão que sempre tenho, nem ela veio dar as caras pra tornar tudo menos estúpido (ou mais). Mal pude acabar. Sorte minha que o cachorro adorava gelatina, e a mulher adorava o cachorro.
Voltei pro carro com uma culpa bizarra, pois até agora não sei se traí meus princípios ou não. Os princípios vegetarianos, eu digo. Porque os outros, ah... os outros já foram traídos várias vezes desde que cheguei aqui.

6

Nada como uma experiência traumatizante pra me acordar desse coma estúpido.
Fui enganado pelo único parente que considerava meu parente de verdade. Era a única pessoa digna o suficiente desta classificação. Por alguns segundos, não consigo acreditar que isso simplesmente aconteceu. Não há mais volta, agora, não importa o quanto eu queira transformar tudo isso num produto da imaginação podre que eu possuo. Cada vez mais eu me sinto convencido de que mereço isso tudo que está acontecendo. Preciso reconhecer, de uma vez por todas, que o outro não é tudo. Por mais que eu deseje que seja. Nunca tive coragem suficiente para reconhecer o indivíduo que em mim habita. Mas agora, não resta outra opção, pois todos aqueles nos quais eu me apoiava para continuar a falsidade que eu chamava de vida, todos estão indo pra longe, um por um, inevitavelmente.
Não adianta continuar querendo ser um parasita, pois não há mais nenhuma vítima. Nenhuma pessoa a mais, de quem eu possa sugar um pouco de vida e fingir plena satisfação. Sei perfeitamente o que preciso mudar, apenas ainda não descobri como fazê-lo. E até isso acontecer, o pior será continuar respirando e pensando. Difícil é saber o que é pior - reconhecer mil defeitos ou estar vivo enquanto tento mudá-los. Daria tudo por um segundo de paz. Daria tudo por um cigarro.

5

Já acordo com aquela sensação estranha. Cabeça vazia, apenas observo o que está à minha volta, com uma certa tristeza em ter despertado. Percebo, contrariado, que a beleza ainda está nas coisas que vejo, e sinto raiva. Seria bem mais fácil permanecer triste se tudo fosse um pouquinho mais feio. Estou tentando escrever sobre a beleza das coisas, é isso? Devo estar doente... Não, estou bem. Apenas sou um péssimo escritor.
Que vergonha.
Cheguei ao fundo do poço e lá não há ninguém para cumprimentar. Tudo bem, se houvesse eu não conseguiria dizer oi, tão tímido que sou. Estou sozinho numa casa espaçosa, convivendo com parentes que não fazem muito esforço para me entender. É como se eu falasse uma língua muito difícil de se aprender, então eles vão se virando como podem. Aliás, sinto-me assim também quando escrevo. Será que alguém está me entendendo? Ou, pelo menos, tentando me ler? Tenho quase certeza que não. Mas não posso mais me conter. Escrevo terrivelmente e me recuso a seguir novos padrões estipulados para a acentuação e ortografia da língua que falo, ou finjo falar. Um computador é a única ferramenta de que disponho no momento, e por isso tenho que me submeter, por mais que odeie qualquer manifestação concretizada de evolução humana. Odeio qualquer tipo da chamada "tecnologia". A maldita.
Sempre tive raiva dela. Abomino seus mp3, seus e-books, suas telas-planas. Daria tudo para estar utilizando, no momento, uma máquina de escrever. E mais uma vez ela me pregou uma peça. Só que essa é diferente, veio em forma de pessoa. Conheci uma, pela internet. E desde o dia em que a "conheci" estou vivendo a verdadeira forma do platonismo. Só tenho acesso às coisas que ela escreve, e às vezes parece que não preciso de mais nada. Em outras, tenho a sensação de que tudo me falta. Estou sendo piegas de novo, merda.