27

A música que eu ouço no momento vale por todas as músicas do mundo. O cigarro que fumo. Os amores que eu tenho. Os amores que eu não faço. As palavras que não escrevo. Os minutos que passam por mim. Os olhos que fecham em devaneio. A fumaça que eu respiro. O som que nunca ouvirei. As vidas que já tive. Os jogos que fazem parte da minha vida. As pessoas que nunca verei. A boca que não vai me beijar. As tatuagens que ainda esperam pra vestir meu corpo. O fôlego que ainda não perdi. Os passos dados. Olhares perdidos. Pensamentos livres e os ainda acorrentados. Os movimentos que meu corpo ainda não fez. A dança latente. Tudo em mim, e o mundo nunca em mim, e eu nunca no mundo.

26

Parece contraditório - as horas mais especiais dos meus dias são aquelas em que estou semi-consciente do que se passa à minha volta, e ao mesmo tempo atento como nunca. O torpor é incontrolável, tarde demais quando sinto sua presença. A dormência chega, as veias do pescoço começam a latejar e o mundo(?) forma-se sob uma nova ordem em minha mente. O medo nunca vai embora; medo bom, às vezes. Minha vista fica borrada e o tempo parece não fazer mais sentido. O sentido parece não fazer mais tempo.
Os pés se enroscando em sincero carinho, no chão sujo, as mãos segurando firme nos canos presos ao teto, a janela aberta e o vento e a fumaça já com ar de familiariedade. Os pelos, os dentes, as roupas, o cheiro, tudo grita pra mim, enquanto tento acordar deste sonho que não poderia ser mais real.
No concerto não foi muito diferente. Nomes estranhos, harmonias desconhecidas e a luta para continuar sóbrio, para não me perder dentro de mim mesmo. Fecho os olhos para tentar entender a música, mas não consigo. Toca-se uma partitura que ficou perdida por oitenta anos em uma biblioteca dinamarquesa. Bohuslav Martinu encontrou seu "filho perdido". Continuo não entendendo nada. Aprecio enquanto há tempo.

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(pensando alto)
a mulher que me inspira está morta.
todos aqueles que me inspiram, dão-me sensação de prazer ou o toque a uma parte ínfima do saber estão mortos.

e não há nada que eu possa fazer em relação a isso. apenas aceitar, transcender, acreditar. reler os textos, ouvir as músicas, assistir aos filmes e me apegar religiosamente aos registros deixados. como se fossem a única prova legítima de que já existiram, por um curto período de tempo, estes seres. o vestígio daquilo que me fez quem sou hoje, as partículas que se unem e formam a minha matéria (in)consistente.

24

Morrer. Deixar de existir. O que isso realmente significa?... Gostaria de saber por que continuo me preocupando tanto com isso, mesmo que não passe de uma preocupação inconsciente, involuntária, uma doença que se desenvolveu em mim e a que reagi passivamente, como um câncer. Estou impregnado de pânico, e temo a insanidade. Assumindo meu estado como tal, aceito qualquer ajuda. Anseio pela volta dos tranqüilos dias de minha amada rotina, que sempre tanto estimei. Anseio a volta de mim mesmo. Em algum passo contra o vento minha personalidade se desgrudou de mim e não pude fazer nada a não ser vê-la indo embora e fechar-me numa breve despedida. Vazio.

23

Meu rosto dói - rangi os dentes o dia inteiro. Tentei ler, mas as palavras me escapam. Sinto que estou ficando mais estúpido a cada dia que passa; não consigo terminar uma tarefa sequer. Parece que estou deixando de existir aos poucos, que meus neurônios estão indo embora um a um, pra onde não sei. O mesmo lugar para onde a minha libido acabou escapando também, talvez. Estou completamente neutro. Nada para sentir, para querer fazer. Sem objetivo, vida sem gosto, tela sem cor, moldura vazia. Textos cada vez menores. E, como a companheira que restou, a triste certeza de que ninguém pode me ajudar agora. Fico paralisado durante alguns segundos, pensando no nada, esquecendo-me de continuar respirando. Angústia.

22

Peço desculpas novamente, caro leitor imaginário, pelos pensamentos e sensações que foram mal-regurgitados em nosso último encontro. Estou em fase de aprendizagem; espero portanto que leve em conta os tropeços no caminho.
A vida passa se esfregando na minha cara. Sua pele quente e pulsante cola no meu rosto, e mesmo assim continuo frígido qual pedra. Tento, tento. Respiração ainda lenta, superfície ainda intocada, constrangida, involuntariamente virgem e mal-sucedida. Arrepio de frio, mesmo - há tempos não me vem o arrepio da volúpia. E algum dia voltará?
I am the son and the heir of a shyness that is criminally vulgar. Não sei se a culpa é minha. Mas continuo. Havendo escolha, alguém me avise por favor. Minha alma está à disposição, sempre esteve - e dessa prostituição não abrirei mão nunca.