48

no ônibus

é noite
não olho pra frente, pois lá estás
tu
que também desvias o olhar - nada se vê lá fora.
protegida pelo disfarce do reflexo,
vejo-te pelo ângulo secreto da janela
e, súbito, sou descoberta, desarmada
pelos teus olhos desatentos
que no vidro tropeçaram.
assim nos encontramos, noutro plano,
qual desencarnados.

47

Volto com a delícia das coisas não resolvidas. Minha ausência não é sentida - não há tempo nisto que eu finjo ser um pedaço de papel; e pra mim, cartesiano, não há nada sem o tempo. Já estou me vangloriando; eu, criação ingrata. Anônima. Que não tem nome pra si nem para as coisas que vê nem para as coisas que pensa sentir. Afundado no marasmo de minha observação, meu vocabulário é dos pobres o maior; faminto, chora por compaixão. Compreensão. Entrelaço os dedos nos outros e os ponho pra cima, até o ponto de estalar algumas vértebras. Essa é a felicidade do meu resto de dia, se queres saber, leitor ausente de um texto ausente. Mas ainda tenho muito guardado pra ti. Todo o vômito de toda uma breve vida. Só esperando o momento certo. Aquela inspiração que não vem nunca. Meus amores sempre foram impossíveis, insalubres, inconsoláveis, assim como todo o resto deste vasto nada.