87

coçou a cara com o livro. a dor nas costas já não lhe incomodava mais. como continuar entretendo a si mesmo? duro pensamento, o que surge do ócio. sou um personagem mais maduro, desenvolvido? creio que não. apenas sobrevivo em textos novos. isso não quer dizer que aceitei e empreguei qualquer tipo de mudança, apesar de ansiar doloridamente por ela. não existir não significa ter mais facilidade nas coisas. 

86

dormente

(dedico o vácuo entre estas linhas ao leitor que as corroeu)

a pele oleosa não sabe mais amar
as imperfeições que cobre e revela
as entranhas que acomoda, 
o sangue que espreme

o olhar opaco não sabe mais temer
a luz excessiva
o perdão não dado
e o sentir-lixo: o sentir desperdiçado

ele mesmo se despreza
ele mesmo não se sente
o sentimento reciclável não sabe mais se reconhecer
nos espelhos
nos banheiros públicos
no cinema de rua

85

engole o seco dessa garganta que ainda tem muito porém nessa história. ainda tem muita não-morte e muita não-vida também - mas a isso você já está acostumado. respira que dói, eu sei. e é pra doer mesmo. tá pensando o quê? deixa a barba crescer, esta é a idade pra isso. uma idade pela qual você esperou a vida toda, e agora chega e você quer morrer. tudo que chega te faz querer morrer. mas é proibido desejar a morte, eles dizem. que situação resta disso? não olha pra mim, eu não tenho a resposta. estou tão fodido quanto você, mas isso não me impede de te gostar mais um pouco. amamos a tristeza, é isso? estarei mentindo se disser que não. cala essa boca, deixa eu falar. a minha monotonia vai te comer vivo.

84

Ele colocou um pé. E depois o outro. Não se sentia nem um pouco seguro, mas não sairia de lá sem um tombo ou outro. Era especialista em tombos; esperava por eles ao correr do dia. A bicicleta enferrujada rangeu no asfalto, quase gritando sua liberdade, gozando seu movimento depois de tantos anos parada na umidade escura. O mesmo fenômeno se dava naquele que, vacilante, tentava controlá-la. Um vento salgado e uma palpitação que dava medo. Tentava ir devagar para o coração não bater tanto. Como eu o amava nesse instante. Amava-o também com meu batimento falhado. Com o mesmo horror de sentir-me insuportavelmente vivo. 

83

É quase um esporte. Um vício bom demais para se largar. Não, ao contrário do que você possa estar imaginando, não sinto nada no momento. Estou completamente intoxicado pelas promessas que se acotovelam, gigantes, entre estas paredes. O ar é curto; elas chegam a se beijar sem terem vontade, não param de inchar. Estou suado, ofegante, a língua úmida divide os lábios pra sair. Não há nem espaço pra um cigarro, elas se esfregam em mim, sugando as gotas que caem, uma a uma, da minha nuca. Aperto os olhos com os dedos, empurrando-os bem pra dentro: elas estão para morrer.

82

diagnóstico:
 
(o coração de amélie dispara sempre que seu pai se aproxima para examiná-la; o que o faz concluir que a menina tem uma doença cardíaca crônica.)

arritmia

(o sangue, feliz de ser sangue-disforme, constrói teia quando estanca. se pára um segundo é caso perdido, não se deixa estar, quer fluir. esmagado por paredes também úmidas, paredes de quase-línguas, cheias de um calor pegajoso, não controla o seu caminho nem sua velocidade. se pudesse, rasgaria tudo aquilo que o envolve.)

81

está vindo. está vindo de novo.
Eu descobri a sombra. É com um arrepio de excitação que eu te conto isso. Eu descobri a sombra, meu amigo.
Estranho é acordar e perceber que se continua vivo. É a maior insanidade que este mundo pode te trazer.
Bizarro, mesmo, é escrever depois de estar vivo. Não deveria ser assim. Estar vivo é um preço muito alto que se paga para escrever. (Brás que me perdoe.)
Mas é bom viver para preencher os espaços com nanquim. Eu me encontrei na sombra. E é morrendo de tesão que eu te conto isso. É não conseguindo mais segurar o gemido. É desgrudando a pele do corpo.

80

- doutor, o que há comigo?
você tem poesia.
- quê? como assim?
brincadeira, o que você tem é depressão.

79

paredes monocromadas. fora do corpo eu observo e tento absorver, num esforço subterrâneo, essa grande massa de plasma que vai se formando à volta. o sangue foi quase todo drenado; ainda há nódulos. o cheiro da fumaça já se tornou familiar. cheiro poroso de ansiedade e desperdício. não me nego a respirar.
não. não! mentira, mentira, é tudo mentira.
deixa fluir. deixa fluir neste exato momento. lembra que o sangue não para. que os órgãos, escravos libertos felizes, não param. cheios de lixo tóxico, resíduos, partículas, névoa e rancor, continuam pulsando, gerando e rangendo. independem dessa tua lágrima mal chorada, desse um quarto de olho que ainda aparece. abre, então, o resto. abre o resto e escreve.


78

óleo sobre tela. o começo não é quando você nasce; é quando eu te encontro. em poucas horas te construo: do rascunho à tinta, perfume e desentendimento, você aparece parado na minha frente. sem borrões. as horas de silêncio e tédio lutam para não te engavetar, e enquanto o nanquim seca eu já não te reconheço mais. entre uma camada e outra de pó, a paciência. não há pressa.



eu espero você existir.

77

- eu tiro os óculos pra te enxergar, eu quero mesmo é arrancar as tripas fora. talvez, assim, você também veja algo. e não adianta costurar tudo depois, você sabe, ah, como sabe... vai rasgar de novo. eu nem tento mais segurar, quero mesmo é sangrar no chão. menstruar na tua cara. acabar com esse rosto, que é meu também. pintar minhas unhas com a saliva que corre solta. te afiar com estilete e te guardar no bolso.
- ponha os óculos de volta.

76

vai chegando ao fim, vai vai
essa bossinha assim, ô vai
chega mais perto que essa vida é sem motivo
um beijo a mais, te deixo em paz
vai chegando ao fim, sim, vai
tudo aqui e tudo em mim

75

bossa velha

e eu que era triste
descrente desse mundo

ainda sou

74

chiste


exílio
existe?

73

literatura ambiente:
um amor negativo.


você é aquela música que eu não conheço e deixo tocando no quarto, enquanto vou fazer coisa qualquer noutro canto da casa.
- sou mesmo?
não, mentira. você não é nada de nada.

72

roupa fora do corpo
cérebro no travesseiro
mediunidade comum:

vejo teu amor
onde não o há.
arritmia e deleite

sem sinceridade:
maior que o tempo
é a vontade.

71

i won't put a spell on you, 'cause you're not mine.

separação com reações eletrostáticas, o desenlace de nossos corpos me causa estalos. a não-relação entre nossas mentes me causa estalos. um choque a cada palavra não dita. soluçar de garganta vazia, mão única, discurso apenas caindo estômago abaixo. não é bem esse o caso. nunca é. (cabeça quente de tanto pensar. corpo rígido. acende aí outro cigarro, que a gente ainda tem tempo. você sempre acha que não vai dar conta, não é mesmo? bebe um pouco mais, vá. você se perdoa, e continua. se for pra perder, continua.)


70

- ei. abra os olhos. o que você está fazendo?

- estou fazendo amor com a sua voz.

69

primeiros socorros

tive uma inspiração para um poema
boca-a-boca

68

sou daqueles que colocam o maço de cigarros no bolso esquerdo da camisa, bem perto do coração.
pra tentar lembrar de tudo a toda hora. uma comparação dolorida para não esquecer aquilo que é verdadeiro. 
ato falho de um deus esclerosado,
intransponível como um muro. nada pulsa, só range.
eu limpo a poeira de você.


67

abre aspas
abre amores
fecha nada

sou uma maldita mistura
de Bentinho com Joel Barish.

66

declaração

você é o pó que fica sobre os meus lábios
depois de horas de escavação
exumação da biblioteca-túmulo.
(você é a prova de que há vida em tudo que é morto
e de que o movimento não escapa nem ao mais morto deus.)

65

mil novecentos e.

les beat
generation
beat les

***

a ilusão temporária e eterna de que um narcótico faz bem.
será que existe morte após a vida?

***

- olha, aquela mulher vive sorrindo.
- pois é, deve ter enfrentado coisas terríveis na vida.

64

você vai embora quando a banda ainda estava tocando. e fuma aquele último cigarro, aquele que faz a garganta doer - e mesmo assim vai até o fim. dá boa-noite ao porteiro e recebe uma resposta cansada, boa noite, uma boa serena ainda noite de trabalho. o único ruído é o da câmera giratória que não tem nenhum delito a registrar nessa hora de delitos. o único sinal de natureza é a vibração emitida por um morcego que não está muito longe de você. você entra em casa esperando o cachorro latir, mas também ele está muito cansado para registrar a sua entrada no recinto. o zumbido nos ouvidos te deixa consciente de que você ainda tem ouvidos. e no momento nada mais é necessário.

63

depois de anos, de universos criados em camadas de poeira, eu tiro o embrulho daquele livro que você me deu. nunca o li, pois eram quatro tomos e eu só tinha o primeiro e o terceiro, ambos presentes de natal de você para mim. o tempo de ler o livro já foi, você vai dizer. mas e se eu  puder recuperar minha cabeça de então? eu sei que muitas já me foram arrancadas desde aquele momento, mas se elas continuam crescendo, as que morrem devem voltar. o seu tempo já passou, o livro me dirá. que posso eu contra um livro, meu deus? a sua não-leitura irá me infernizar até o fim de meus dias. e você já sabe como isso vai acabar: em leitura-estupro.

62

insuficiência cardíaca


Quero amar o mundo inteiro
mas não dou conta

61

eu parei, que é pra ver se movimento mais, buscar vida onde não tem. eu tento morrer, que é pra ver se você me ajuda a pulsar com mais intensidade ainda, e eu irrito, irrito, irrito, sem soltar da mão da criança, pois quando soltar é morte na certa. é morte todo dia, é morte na própria vida que escolheu não fluir e é muito mais fácil a gente ficar aqui, vitimando. no tempo em que estive fora meu cérebro ainda esteve dentro e eu pensei, pensei, pensei. vou escrever o livro do defunto pra você, espero que goste. vou prepará-lo com todo o carinho do não-editor, extendendo-me em cada resto de tinta fresca, pra ir morrendo menos. repito-me pra ficar na sua memória fugaz de não-leitor que é.
preciso encadernar meus dias.