117

cortesia

somos todos filhos da puta:
a puta coesa poesa
ia
cor e corte
nosso sangue está na moda:
esperamos a última foda
lambemos os olhos
e deciframos a morte

116

Because
escrito em 23 de abril de 2011

pegar o vinil, sentir o seu peso. o seu brilho escuro. amar as suas falhas, acostumar-se  aos momentos em que o disco pula, cheio de arranhões, vários donos. sentir o cheiro do seu encarte. aquele cheiro de guardado, de antigo, um quê de podre e único. amar a sua materialidade, um amor sutil. 
observá-lo girando, com a impressão de que vai se desmanchar, toda aquela massa negra irá se derreter sob a agulha. mas ele continua apenas girando.
sentir o peso das coisas entrar pelo ouvido. e as segundas vozes são tão fortes e importantes, que é com elas que você escolhe cantar junto, misturando sua voz desafinada e emocionada ao chiado. importantes por dar totalidade à harmonia. tentar reconhecer cada um dos timbres. tentar imaginar os rostos - a expressão do canto no momento da gravação. morte viva.
uma música que te entorpece, que fode com o seu cérebro, não importa quantas vezes você a escute. a melodia, as vozes juntas, essa união, meu deus, essa união. parecem resumir os anos sessenta em alguns segundos, em algumas palavras. resumem aquele sentimento, aquele mesmo, que você não descreve em cem páginas.

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você tem jeito de entranha. meus ouvidos, obsoletos:
te ouço com a pele;
te ouço por dentro.

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da hipermetropia
(...) Sou a dependência que insiste no que machuca
 ao invés de olhar outros caminhos mais reais.

Sou a vida desperdiçada. - Beatriz Guimarães

(O que a barriga vazia te diz? Quanto a mim, não escuto direito. Preciso de mais corpo para ouvir o meu. E talvez, quem sabe, alguma linearidade me cairia bem. Não sou linear, nunca fui - inconsciente e escoliose sempre me dominaram. Faço um esforço, pois, e se não sangrar é porque não deu certo.)

A saúde e a ignorância, típicas da infância, não me permitiram ir muito além em questões de percepção corporal. Se algo estava bom, funcionando, na prática não existia pra mim. Eu descobria o meu joelho quando ele era ralado, e logo depois de algumas lágrimas, voltava para o vácuo de onde surgira. Não me lembro, tampouco, de espelhos. Ou escolher roupas e acessórios - tudo me convinha, e o ridículo era apenas um carinho a mais no rosto.

De modo estranho, algum vapor se desfez e pude perceber as pessoas surgirem à minha volta, qual mágica, com o passar dos anos. Ainda ralas, cinzas, foram ganhando consistência ao toque. A adolescência instalou um paralelo curioso entre o amor próprio confiante e a veneração aos outros. Veneração, como de praxe, cega. Mas essa cegueira envelheceu e tornou-se algo muito mais perigoso, vivamente disposto a ignorar a maldade do mundo - da qual, a esta altura, eu já me tinha dado toda conta possível - uma hipermetropia voluntária.

E não há par de vidros que corrija isso. Quanto mais perto de mim uma pessoa chega, mais tenho dificuldade em enxergar a sua verdadeira personalidade. A proximidade assusta, faz encolher, como a um bicho ameaçado. O diálogo, quanto mais se desenvolve, mais turva a minha mente e estimula aporias internas e doses homeopáticas de uma esquizofrenia docemente maquiada de ansiedade. A imagem distorcida, fruto de olhos imperfeitos, acomoda-se após a retina junto com todos os meus outros devaneios. Assim, sem querer, transformo todos à minha volta em fragmentos estranhos de mim mesma, que só voltam ao seu estado natural à medida que se distanciam. Mas de longe até que enxergo bem, bem demais.

113

(o porquê de eu não gostar de comer frutas)
pensado em 15 de dezembro de 2011.


elas têm uma vida tal que me é insuportável.
(insuportavelmente fluida)
são suculentas, com cores fortes - chega a ser humilhante:
estremecem de felicidade a uma só mordida (ah!)
e soltam rios d'água.

112

sol na cara.
escrito em 20 de março de 2012.

A alça do soutien, caída, aparecia por fora da manga da camiseta. Uma tosse cremosa compunha o ambiente musical junto com o roncar dos motores que passavam. Encurvou o pescoço perto do poste e fez-se fonte: cai, lentamente, um fio de catarro.

Olha pro meu rosto e, enquanto tento manter a face neutra, ouço-a dizer:

- Esse cigarro!

- !

- Pra gente fumá e bebê, tem que comê comida forte. Senãonumdá.

111

haikai de adoração
escrito em 29 de agosto de 2010.


à noitinha, antes de dormir,

leio Manuel Bandeira,

meu anjo da guarda.

110

"Aquela livraria já tem seu piso afundado", você diria, "de tanto que os seus pés sulcam aquele caminho" - uma verdadeira Notre Dame, dilapidada por seus peregrinos - a erosão que é fruto do amor. Não discordo; sigo a confiança já conquistada, os territórios familiares. E hoje não foi diferente, a não ser por um imprevisto: mudaram minha aconchegante seção para outro lugar, e continuei a perscrutar as prateleiras, os pés decepcionados carregando olhos confusos.
(Não.)
Os pés congelaram ao som estranho que invadia uma seção que não era a minha - livros de arte sacra, ou era Monet? não me lembro mais. Um velhinho, em tentativas de diálogo com aquele que parecia seu filho, liberava, a breves intervalos, frases doces e calmas, em italiano coloquial. O carinho inerente à sua voz idosa trancou meus pés ao chão: sem coragem de olhar à minha volta, folheei rapidamente uma coletânea com as obras de Escher, esperando absorver mais daquilo que o filho desperdiçava aos litros.
Voltei pra casa encharcado.

109

do lado de dentro.
(escrevi isso em dezembro de 2010 - tivesse sido ontem, não haveria a mínima diferença.)


Enquanto redescubro o espaço do meu quarto, cuido dele. Cuido dele como se fosse uma extensão de mim, posto que não consigo cuidar diretamente de mim mesma. (Está certo falar mim mesma?)

Sinto-me parcialmente curada a cada atitude que tomo em relação aos meus livros. Toda pilha nova que se forma me é uma bênção. Todo quadro que se pendura. Ou o pôster grudado diretamente à parede, por negligência. Dentro do quarto e dentro de mim. Duas circunferências com o mesmo centro. Parece que algo sempre muda pra melhor. Dentro de mim também estou reaproveitando os espaços e dando vida a muita coisa que estava parada por muito tempo.

Revelar fotos e montar álbuns é algo que também me traz muita serenidade. Pegar no papel, brilhante e fosco, reconhecer os rostos impressos, lembrar do momento em que as fotos foram tiradas. Guardar o álbum no armário. É de uma simplicidade que me deixa estarrecida. É tão fácil sentir-se bem que às vezes machuca. Mudar a posição dos móveis. Sentir o quarto respirar diferente. Rasgar mais uma folha do calendário. Não, não há melancolia aqui pois a passagem do tempo é muito bem vinda e as mudanças anseiam por vir.

E a coleção de marcadores de livros vai aumentando.

108

do que não há

uma ânsia que vem do meio do corpo. não sei exatamente que ponto, parece a boca do estômago. entre um compasso e outro, se alarga num espasmo e torna a se redimir. como pequenos orgasmos que bloqueiam qualquer tipo da mais básica racionalidade. desaprender tudo - escrever torna-se mais penoso a cada dia, e não há refúgio. não há argila, nanquim ou aquarela que sustentem o silêncio das teclas.
não. para todo o sim que houver. perdoa-me, sra. bloom, mas não. o peito sente em ranger neste seu trabalho ingrato. cospe-se aos trancos o pedaço de cada momento belo de existência e não é disso que eu preciso no momento. eu quero facilidade. eu quero literatura podre, decomposta.

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Cenários e memórias. Gosto do frio pois sinto-me, quase por obrigação, mais aconchegada em relação a mim e aos outros. O frio me lembra sair do banho em plena sauna, e ter que vestir roupas compridas, que grudam no corpo nos primeiros momentos. Roupas compridas me lembram espetáculos, ver a minha vó entre perfume, maquiagem, e camadas de tecido impregnadas de uma singular mistura de cheiro de vó e cheiro de armário. Penso em teatro e ópera, esperar no frio, na fila, enquanto se lê alguma coisa. Os atores com meias-calças e pó branco afagando seus rostos; quase não há suor, no palco também é inverno.

106

olhos secos

A máquina, os botões, as letras. A ausência de vida me conduz, pela mão, à escrita, ao torpor, ao maior dos embasbacamentos. O segundo caderno. Pedaços sujos de papel barato me lembram questou numa metrópole. É com desespero que a busco. Procuro o teatro, procuro o museu, me perco em labirintos de cinema e meias-entradas. Sou uma metrópole - algo que nego. Essa definição nunca me satisfez, o anseio pela calma é maior; a busca do meu interior começa na busca pelo interior, a falsa cidade, o campo ainda visível. Mas hoje acordei, acordei jornal, acordei barata, e não estranhei - pelo contrário, quero mais, quero encharcar o espírito com tudo que não seja eu, quero me anular, quero a cidade, o pulso, a planta morta, o cansaço, a espera, o saudável e diário suicídio. Quero a cidade.

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um cão, entrecortado, que ainda sofre com a sua não-morte.
seus órgãos são arrancados, um a um,
- por mãos que prefere desconhecer -
e lhes são enfiados goela abaixo.
(a mulher é um cão.)
o cão não tem escolha. sobrevive.
come seus órgãos, come sua felicidade, come sua placenta.
doa-se por inteiro ao nada
e se alimenta de si mesmo.
(o único caminho é o do si-mesmo.)