126

Rumo à necessidade aguada
dos teus globos oculares,
No asfalto escuro,
Avisto duas esferas amarelas:
a anti-sombra dos faróis.
Rumo aos faróis, remo.

125

a tua pele merece umas tesouras.
merece a minha tesoura
- sim, eu falo -
o meu falo é assim,
à base dos nervos.

(em uma cena qualquer)
te defolhar,
fo-lhe-ar
lamber tuas camadas
e tuas páginas.

124

Com dores cada vez mais fortes na nuca, ela continuou na mesma posição até terminar a leitura de um livro fininho e, ao mesmo tempo, pesado. Não queria fazer grifos, ou comentários ao pé das páginas. Não sentia a incontrolável ansiedade de transcrever trechos para afixá-los nalgum canto do cérebro. Ou pior: era ausente nela, da mesma forma, aquela ponta de vontade de--
- E aí, Luiz, beleza?
- Oi, Clara. Beleza e aí?
- Tô bem. Cê num sabe o livro que li ontem--
Aquele estar nos outros, aquele sobreviver nos outros, aquele--
- Puts, tenho um monte de coisa pra ler, uns filmes que baixei pra ver,
- É, tamo junto, tempo é nada,
- Como é que a gente faz?--
Estava morta, enterrava-se em seus banhos, em seus ônibus, cobria-se de pessoas.Exercia a memória, deixava a náusea vir.

123

unidos por fones de ouvidos
e algumas desgraças,
o brilho da tela no teu colo
embranquece a nossa mulatês:
na estrada, não temos medo.
a noite imposta, factual,
não me permite esquecer que,
a um nível ou a outro,
somos todos doentes terminais.
permaneço calada, ouvindo.

122-69

Era domingo. Era domingo pra sempre.
Ela deixava o suor se acumular entre os seios,
- seduzindo a si mesma -
Sangrava pelas cutículas, numa tentativa de se alongar pelo quarto:
nos outros, era inteira.
Deixou-se morrer no colchão, agora limpo, e pôs-se a ler a primeira página.
Queria imitar o livro; irracional, abria-se. Arrancava suas folhas.
Fazia, do papel, roupa. Lia o seu sexo em braile.
Ria. Ria muito. Mastigava as letras. (louca.)
E voltava a um sono profundo.


um dois um

Acordou ofegante, sob o bálsamo de seu suor pegajoso - acordou mulher - e não conseguiu enxergar que horas eram. Enfiou os olhos no escuro e sentiu, por um momento, que a superfície deles poderia se romper se olhasse mais a fundo:
Não, não há nada. Volta a dormir, vai, volta.
Não consigo.
Começava a gemer, sem nenhum controle sobre seu corpo, como se o simples produzir de som fosse lhe trazer alguma paz. Revirava-se nos lençóis manchados de sal e um tanto de sangue. Na maioria das vezes, o cansaço a vencia.
Naquela manhã, a sensação de muitas outras: Um sonho pesado, mais real que o acordar. Sonho febril, úmido, interminável e completamente excitante. Levantou, estalando os joelhos, em busca da prateleira mais próxima:
Não tem muita poesia aqui.
Pegou um dos volumes da estante e atirou-o à cama. Será que esse eu leio no ônibus sem querer vomitar?
(Será que algum livro na vida eu leio sem querer colocar as entranhas ao ar?)

cento e vinte

Adorava segurar a bexiga cheia, quase explodindo. Gostava de testar os limites do seu corpo, mesmo de uma maneira babaca como essa.
- Cê não vai me levar pra passear?
Ela perguntou ao Cortázar. O gato não respondeu. Na verdade ele nem estava olhando pra ela.
- Ah, é, esqueci que gatos livres não saem. Sou humana, presa; saio, pois.
Ela tinha trabalho. Tinha dois ônibus pra pegar e um tanto de chão pra caminhar, todos os dias. Mas dava o seu jeito de fingir que era tudo uma puta surpresa. Sua espontaneidade chegava a machucar o olhar alheio, devia ser admirada com moderação. Dias programados e cinzas apareciam, também, para não matá-la de tédio. Há que se mapear, de vez em quando.
Logo cedo deixava o seu apartamento, no centro, com uma sensação estranha de que o havia perdido. Parecia um bebê em formação: precisava olhar para as coisas pra lembrar que elas existiam. Aproveitava o ônibus lotado da Orosimbo Maia para entrar em contato com um calor incômodo e necessário. Tentava ler, mas logo envesgava e enjoava. Mas não queria ouvir música. Colocou, então, o rádio de seu celular numa estação que só dizia as notícias recentes, e logo se sentiu transportada para uma época que não conheceu (talvez aquele fosse o seu masoquismo preferido), uma época de ouvir vozes, prestar atenção, sem rostos, sem telas, sem retinas descoladas. Viciada, deixou-se extasiar e perdeu o fio da meada. Perdeu também a porra do ponto.
- Não importa, ainda tenho rótulas pra desgastar.
Na volta pra casa, separou livros de poesia para tentar ler no dia seguinte.