104

ode à matéria

ode falsa; necessidade.
eu preciso da matéria. do papel de jornal, do livro empoeirado, do vinil mal-cheiroso, do cd novo, do postal carimbado, do vidro de perfume, do porta-níqueis, do pincel de barbear, dos botões (ah, os botões), das teclas, das válvulas, das correntes, correias, das tintas.

103

é tudo metro

desenrola o filme,
põe o negativo contra a luz,
alinha as tuas entranhas,
endireita os quadrinhos,
desvenda o tempo,
desfaz a minha roupa;
e costura a vida de novo.

102

deixei de ler Proust
pra ouvir samba:
cada pedaço do Rio eu busco e afasto com a mesma energia.
(algo inerente, natural, um sotaque úmido)
sotaque reprodutor de vida,
pegajoso, brilhante, mole.
o sal que não sai da pele.

vezes há em que me despenca o céu da cara
(e os olhos, em nuvem, se desfazem)
e reconheço, sem medo, que a minha alma tem cheiro de praia.

101

em tempos incertos, assim,
meu caro amigo,
vou à banca de jornal
enquanto ainda há bancas de jornal pra se ir.

100

ao meu lado, no banco da praça:
um joelho sobre o outro, olhar erguido, enquadrado.
as mãos, leves, repousam em calma e aço.
é esta a poesia natimorta,
a minha e a tua,
são estas as nossas secas entranhas.
é este o nosso paciente desespero
por um pouco de nanquim e espasmo.