blog encerrado

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– E se vistas por trás de uma janela com vidro embaçado, as ruas se-lhe tornam mais analógicas, é porque você tem medo de se deixar viver pela pele, de se deixar comunicar por pulmões transpirantes e porosos, desbloqueados por qualquer obsessão. Acompanhar o ritmo dos outros pode, sim, ser saudável e prazeroso como ocupar o banco de trás de um carro num dia chuvoso em que você olha pela janela com vidro embaçado. Mas o pescoço se curva, a coluna-chicote estala-estrala, e você volta a caminhar na calçada, desviando de psicopatas e bostas de mendigo ou cachorro diluídas pela água da chuva. Realmente, não fez diferença você ter saído naquele dia, como se conviver com pessoas e querer transar com pessoas fosse algo longe – até absurdo, você diria, talvez – do que você considera uma atitude normal de um dia estimulante e feliz. Você se sente impelido pela necessidade dos outros, isso eu não posso julgar, mas retornamos novamente à conversa do carro. Se não aguenta a autonomia de andar e é humilhante demais ser dirigido, use uma bicicleta então – você se guia aos lugares pagando o justo preço do esforço do seu corpo. Acho super adequado, digno mesmo.

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uma sala escura, entornada de escadas espirais, grossas, fortes. um piano quase inútil é tocado por uma senhora enquanto ouço a conversa deles, absorto e reacordado a cada batida nas teclas já arfantes. não presto atenção a uma palavra sequer. perco-me na barba de um dos presentes. perco-me na cara inteira dele, na verdade. seus traços me são de uma familiaridade que finjo ignorar para não enlouquecer. o olhar, a inclinação dos dentes ocres, até mesmo o padrão seguido pelas linhas de sua expressão. volto para a barba, a única que foge desse espelho insuportável, salpicada de cinzas. redemoinhos são formados em suas bochechas, deixando emergir a noite estrelada em seu rosto e em minha memória.

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reconfortante encontrar, com um cigarro em mãos e um sorriso sereno no rosto, aquele amigo que você via fumando cinco anos atrás, depois de experimentar mais uma tentativa de sentido numa sala suja no centro da cidade suja, onde as cadeiras enegrecidas - algumas ainda com cinzeiros na parte de trás, relíquias - acomodam desorientados como você, não importa o convite, a ocasião, o algo a celebrar, é sempre desorientação que reúne as pessoas lá ou aqui, no conforto da penumbra e das paredes descobertas por seus papéis que se desintegram, sucumbindo ao tempo. há uma moça cantando na frente da fileira de cadeiras, as cadeiras com cinzeiros atrás, e o fio acoplado ao seu rosto produz efeito eletrônico em sua voz e seus silêncios. você se esforça para entender, mas tudo que acaba sentindo é uma mistura de tesão e sono, e eu volto o olhar para a cantora de cabelos laranjas brilhando sob a luz quente - na ponta do fio, em sua boca, há uma bola vermelha que ela revolve entre a língua e os dentes, brincando com os efeitos sonoros provocados por estes movimentos. a materialidade do som é esmagadora (fúria!) e seguimos o fio e adentramos a garganta ruiva, encontrando uma aconchegante e úmida câmara de cordas e sangue.